A primeira excursão do Fluminense à Europa

Curiosamente o Fluminense, clube que tem o pioneirismo em seu DNA, demorou a jogar no continente europeu. O primeiro clube brasileiro a excursionar pelo velho mundo foi o Paulistano, do craque Arthur Friedenreich, em 1925. Em segundo o Vasco, em 1931. Com relação à excursão vascaína, é sempre bom lembrar, o Fluminense gentilmente cedeu um de seus melhores jogadores, o center-half Fernando Giudicelli, titular da Seleção Brasileira na Copa de 1930, para reforçar a equipe de São Januário. E o jogador jamais retornou, sendo contratado pelo Torino.

Os demais clubes brasileiros só atravessariam o Atlântico mais ou menos à partir da virada dos anos 40 para os anos 50. O Fluminense, em 1955, exatamente 30 anos depois do Paulistano. O time não atravessava um grande momento. No início daquele ano, Zezé Moreira, técnico do Fluminense e da Seleção Brasileira, trocara o Tricolor pelo Botafogo. Gradim, auxiliar de Zezé, comandou a equipe interinamente por alguns meses para depois Russo, ídolo tricolor nos anos 30 e 40, assumir a função em definitivo. Para um time que tinha sido treinado pelo mesmo técnico por quase quatro anos e estava mais do que habituado ao seu sistema de jogo as mudanças não eram tão fáceis. E o resultado foi uma fraca campanha no Torneio Rio-São Paulo daquele ano. Mas nessa altura as excursões à Europa tinham se tornado uma verdadeira febre e já estava mais do que na hora do Fluminense se colocar à prova em uma dessas “aventuras”.

A delegação tricolor embarcou na madrugada do dia 18 de Maio de 1955 rumo a Istambul na Turquia assim constituída:

Chefe da delegação: Aloisio Affonseca
Diretor Administrativo: Gaspar Labarthe da Silva
Médico: Newton Paes Barreto
Técnico: Adolpho Milman (Russo)
Massagista/Roupeiro: João de Deus Andrade
Jogadores: Castilho, Veludo, Pinheiro, Duque, Píndaro, Laffayette, Bigode, Bassú, Clóvis, Edson, Victor, Didi, Róbson, João Carlos, Telê, Miguel, Escurinho, Quincas e Waldo

Embarque2

Embarque da delegação tricolor. Em pé: João de Deus (massagista), Escurinho, Telê, Bassú, Waldo, Píndaro, Russo (técnico), Aloisio Affonseca (chefe da delegação), Gaspar Labarthe (diretor), Duque, Castilho, Paes Barreto (médico) e Quincas. Agachados: João Carlos, Laffayette, Pinheiro, Bigode, Miguel, Róbson e Edson. (Esporte Ilustrado)

Após uma viagem cansativa, com escalas em Recife, Dakar e Lisboa, e ainda uma conexão em Roma, a delegação chegou a Istambul onde faria cinco jogos no Estádio Mithatpasa (demolido recentemente para a construção de uma dessas modernas arenas). A estreia aconteceu no dia 21 de Maio, contra o Adalet, e o Fluminense venceu sem maiores dificuldades pelo placar de 4×1, causando boa impressão na torcida turca. Os gols foram marcados por Escurinho, Telê, Didi e Róbson, sendo Didi o destaque da partida.

Adalet

Fluminense 4 x 1 Adalet. Primeiro jogo do Fluminense na Europa (Milliyet Gazete)

Já no dia seguinte o Tricolor voltava à campo, desta vez contra o Besiktas. O desgaste da longa viagem somado à partida de estreia no dia anterior acabou pesando. O Besiktas abriu uma vantagem de 2×1 no primeiro tempo e se fechou no segundo. Apesar do cansaço o Fluminense passou a dominar completamente o jogo, que se tornou um autêntico ataque contra defesa. Teve grandes oportunidades mas não foi feliz nas finalizações. O goleiro turco Bulent foi a grande figura em campo e garantiu o resultado.

Fato curioso relatado pelo chefe da delegação tricolor sobre este jogo é que o futebol praticado pelo Fluminense agradou de tal forma o público presente no estádio que este passou a torcer pelo empate, inclusive se manifestando para que o árbitro desse mais tempo de desconto. Ao final do jogo os dois times foram muito aplaudidos.

Três dias depois o Fluminense enfrentou o Fenerbahce. Com o devido descanso o time pôde botar em prática seu melhor padrão de jogo e venceu por 1×0, gol de Róbson de peixinho, completando um cruzamento de Telê. O placar magro não expressou toda a superioridade do Fluminense que mandou três bolas na trave adversária.

Fenerbahce-Robson

Fluminense 1 x 0 Fenerbahce. Róbson, caído, marca de cabeça o gol da vitória (Dünya)

Na sequência o Fluminense descansaria mais três dias para então fazer novamente dois jogos seguidos no fim de semana: sábado contra o Galatasaray e domingo contra um selecionado da Turquia. Píndaro, Pinheiro e Clóvis, contundidos, desfalcariam o Tricolor nestas partidas. Mesmo assim o Fluminense conquistou mais duas vitórias. 2×0 sobre o Galatasaray com uma atuação espetacular de Didi, que a esta altura já havia conquistado plenamente o público local e foi muito ovacionado ao ser substituído. E 4×1 sobre a Seleção, naquele que curiosamente foi o jogo mais fácil do Fluminense na Turquia. Explica-se: o técnico da seleção experimentou novos jogadores visando a Copa do Mediterrâneo, competição pela qual a Turquia enfrentaria a Itália em algumas semanas. Aproveitando-se do fato da Seleção não estar com sua força máxima o Fluminense promoveu um verdadeiro atropelamento.

Encerrando sua estadia em Istambul com quatro vitórias em cinco jogos, aclamado pelo público e pela imprensa local, o Fluminense rumou para Florença, onde enfrentaria a Fiorentina. A partir deste ponto da excursão o Tricolor jogaria em centros onde o futebol se encontrava em um estágio mais avançado e as dificuldades naturalmente passariam a ser maiores. Nesta partida por exemplo, dos 16 jogadores que a Fiorentina colocou em campo, nada menos que 12 haviam atuado ou viriam a atuar pela Seleção Italiana: Costagliola, Magnini, Chiappella, Rosetta, Orzan, Mariani, Virgili, Segato, Gratton, Sarti, Cervato e Prini. Isso sem falar no sueco Gunnar Gren, titular da seleção vice-campeã mundial em 1958.

Como era de se esperar o Fluminense começou a partida respeitando a Fiorentina, que foi melhor nos primeiros 20 minutos. Mas aos poucos o Tricolor foi tomando conta do jogo e aos 38 minutos abriu o placar com um gol de João Carlos. Gratton empatou para os italianos logo no início da segunda etapa mas o Flu seguiu dominando, com Didi no comando das ações. Waldo desempatou aos 24 minutos e pouco depois Pinheiro, outro que teve grande atuação anulando por completo as ofensivas da Fiorentina, deu números finais ao jogo marcando de pênalti. Vitória categórica por 3×1. Didi mais uma vez teve suas qualidades amplamente reconhecidas pela imprensa local. Essa foi provavelmente a vitória mais significativa do Fluminense na excursão.

Fiorentina

Fluminense 3 x 1 Fiorentina (La Nazione)

Curiosidade histórica: o Fluminense ostenta até hoje uma invencibilidade contra times italianos. Desde este primeiro confronto com a Fiorentina foram realizados 14 jogos, com dez vitórias do Fluminense e quatro empates. O Flu perdeu para a Seleção Italiana em 2014 mas nunca para um clube.

Após o jogo contra a Fiorentina a delegação tricolor visitou o Cemitério de Pistoia, pequena cidade vizinha à Florença, onde estavam enterrados os soldados da Força Expedicionária Brasileira que morreram em combate na Segunda Guerra Mundial. Os pracinhas, cujos restos mortais anos depois foram trazidos para o Brasil, foram respeitosamente homenageados pela delegação tricolor com um coroa de flores.

Pistoia

Delegação tricolor homenageia os pracinhas no Cemitério de Pistoia (Revista do Fluminense)

O Fluminense seguiu então para a Suíça onde enfrentaria o Lausanne Sports. Para fazer frente ao Tricolor o Lausanne se reforçou com vários jogadores de outro clube suíço, o Young Boys. Mas não adiantou: vitória do Fluminense por 3×2.

Lausanne

Fluminense 3 x 2 Lausanne Sports. Atuação soberba do Fluminense segundo a imprensa local.

De Lausanne o Fluminense rumou para Zurique afim de enfrentar o Grasshopper, time que lhe dera enorme trabalho três anos antes na campanha do título mundial (Copa Rio). Naquela ocasião, jogando no Maracanã, o Tricolor teve que se desdobrar para superar o ferrolho suíço e vencer por 1×0. Três anos depois o placar quase se repetiu. Victor abriu o marcador para o Fluminense no primeiro tempo com um chute de longa distância mas nos minutos finais da partida o iugoslavo Vukosavljevic (ou Vuko, como os suíços o chamavam pra facilitar) aproveitou-se de uma confusão na porta da meta do goleiro Veludo e empatou, encerrando assim uma sequência de cinco vitórias seguidas do Fluminense na excursão. Apesar de todos os clichês da época quando se falava em “ferrolho” toda vez que se enfrentava uma equipe suíça, o Grasshopper era um bom time. Russo, técnico do Fluminense, declararia na volta ao Brasil que este foi o jogo no qual o Fluminense encontrou maiores dificuldades.

Grasshopper

Fluminense 1 x 1 Grasshopper. Laffayette (2) disputa uma bola pelo alto (United Press)

De Zurique o Fluminense seguiu até a cidade portuária de Antuérpia, na Bélgica, para enfrentar o Valencia da Espanha. Nesta partida, por três vezes o Fluminense esteve em vantagem, por três vezes cedeu o empate. E o placar final de 3×3 agradou amplamente o público. O grande destaque do jogo foi sem dúvida o segundo gol do Fluminense, marcado por Escurinho. Após uma envolvente troca de passes entre Didi, João Carlos, Waldo e Telê, Escurinho acertou um tirambaço de 30 metros no fundo das redes espanholas. O lance foi aplaudido de pé pelo público presente no estádio.

Valencia

Fluminense 3 x 3 Valencia (Le Matin)

A seguir o Fluminense teria um adversário duro pela frente, o Racing de Paris. Se hoje o Racing está praticamente desaparecido do cenário futebolístico, na época era o principal clube da capital francesa. Assim como no jogo contra a Fiorentina alguns jogadores de nível internacional enfrentaram o Fluminense nesta partida. O zagueiro Roger Marche (Copas de 54 e 58), o meio-campista Mahjoub (Copa de 54), o goleiro Taillandier (Euro 1960), o austríaco Ernst Happel (este, além de ter jogado as Copas de 54 e 58 foi um grande treinador, sendo vice-campeão mundial em 78 com a Holanda e campeão europeu em 83 com o Hamburgo), além do brasileiro Yeso Amalfi.

O cartaz do Racing era bom mas em campo o Fluminense foi melhor. Apesar do jogo difícil, com uma bola na trave para cada lado e boas intervenções do goleiro Veludo, vitória tricolor por 2×0, gols de Miguel e Escurinho. Foi a primeira vez que o Fluminense jogou no famoso estádio Parc des Princes, palco onde conquistaria os Torneios de Paris de 1976 e 1987.

Racing

Fluminense 2 x 0 Racing de Paris. Intervenção do goleiro francês Taillandier (United Press)

Depois desse jogo o Fluminense retornou à Suíça, mais precisamente à cidade da Basileia, onde enfrentou o Basel e venceu com certa tranquilidade: 4×2. Dali seguiu para a pequena cidade francesa de Lens onde enfrentou o Lille, que dias antes havia conquistado a Copa da França, e obteve um empate por 3×3.

A próxima e última parada seria em Portugal, onde o Fluminense enfrentaria o Porto no Estádio das Antas. Os jogadores estavam empenhados em fechar a excursão com chave de ouro mas isso não foi possível graças a atuação bizarra do árbitro português Abel da Costa. O jogo valeu apenas pelos primeiros 35 minutos, enquanto os dois times estavam completos. Até ali o placar apontava 1×1 tendo Didi aberto o marcador para os tricolores. O Fluminense jogava melhor e os portugueses baixavam o pau (nas palavras de Didi). Foi então que o homem de preto entrou em ação. Após a marcação de uma falta para o time da casa, Laffayette, em uma atitude corriqueira no futebol, reteve a bola por alguns segundos para a defesa tricolor se recompor e depois jogou-a na direção do local da falta. O árbitro então resolveu expulsá-lo. Pinheiro, capitão da equipe, reclamou e também foi expulso. Com dois jogadores a menos ainda no primeiro tempo o jogo basicamente estava encerrado para o Fluminense. Aos 15 minutos do segundo tempo o Porto desempatou. Minutos depois foi a  vez de Escurinho ser expulso. Os portugueses então aproveitaram a vantagem de 11 jogadores contra 8 e marcaram mais um, fechando o placar em 3×1.

Porto

Porto 3 x 1 Fluminense (Jornal dos Sports)

A atuação escandalosa do árbitro logicamente causou revolta entre os tricolores. Em protesto a delegação não compareceu ao banquete em sua homenagem que seria oferecido pelo Porto após a partida. A paz entre os clubes foi selada um ano depois com um amistoso realizado no Maracanã. Sem nenhum jogador expulso o Fluminense venceu por 3×0 diante de mais de 100 mil pessoas.

A primeira excursão do Fluminense ao continente europeu chegava assim ao seu final com um saldo amplamente positivo de oito vitórias, três empates e duas derrotas. Na volta para casa um último contratempo: quando o vôo que trazia os tricolores já sobrevoava o Oceano Atlântico uma falha técnica fez com que a aeronave tivesse que retornar rumo à costa africana, aterrissando em Dakar. A chegada ao Rio de Janeiro aconteceu em 4 de Julho, 47 dias após o início da excursão.

Resumo5

Jogadores

3 comentários

  1. Bons tempos esses, em que os clubes tinha um tempo do ano para faturar em excursões pela Europa (em geral). Seria melhor, ao invés de jogar esse nosso falecido campeonato local, voltar a faturar e se divulgar nessa viagens.
    Bizarra esta estória do Vasco, que nos leva um jogador importante, emprestado e não devolve.
    Esse time era uma das maquinas que vi. Não sei como podia estar fazendo uma má campanha, como ocorreu naquele RJ X SP.
    De todos jogadores, só não me lembro do Miguel.
    Parabens pela lembrança histórica.
    ST

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