O extraordinário Romeu Pellicciari foi um dos grandes ídolos da história do Fluminense. Um dos maiores craques (se não o maior) de um dos maiores times (se não o maior) que o clube já teve, o esquadrão que levantou cinco títulos cariocas entre 1936 e 1941. O que pouca gente sabe é que um dia ele abandonou o Fluminense e foi para o Botafogo. Ele e Lara, outro bom jogador trazido do futebol paulista para formar aquele esquadrão.
Vivíamos os tempos da cisão no futebol carioca, que durou de 1933 a 1937. Uma verdadeira guerra fria. De um lado Fluminense, Flamengo e América, filiados à Liga Carioca de Football, e esta à Federação Brasileira de Football, entidades criadas por ocasião do surgimento do profissionalismo em 1933. Do outro Botafogo, Vasco e Bangu, filiados à Federação Metropolitana de Desportos, esta à Confederação Brasileira de Desportos, que por sua vez era filiada à FIFA.
A briga era pesada e algumas vezes suja. Certa vez, em plena disputa do Campeonato Carioca de 1936, quando o Fluminense brigava pelo título que quebraria seu jejum de 12 anos, o maior da história do clube, a CBD investiu pesadamente para tirar de Laranjeiras os principais jogadores do time: Romeu, Hércules e o goleiro Batatais. O Campeonato Sul-Americano de Seleções estava se aproximando e cabia à CBD, entidade oficial reconhecida pela FIFA, a organização da Seleção Brasileira. Os jogadores do Fluminense, filiados à outra Liga, não poderiam ser convocados. A CBD começou então a assediá-los com a promessa de jogar o Sul-Americano e depois fazer um bom contrato com Botafogo ou Vasco. A proposta era tentadora mas os jogadores resistiram. Batatais declarou publicamente que só sairia do Fluminense no dia em que o clube não mais o quisesse. Hércules também se pronunciou: “abandonar o meu clube seria loucura, eu já considero aquilo o meu segundo lar”. E após algumas semanas de suspense o Fluminense encerrou o assunto renovando antecipadamente os contratos que se encerrariam no fim do ano. Desta forma o time pôde jogar a reta final do campeonato com tranquilidade, pensando apenas em conquistar o título, o que acabou acontecendo em uma histórica melhor de três contra o Flamengo de Leônidas da Silva e Domingos da Guia.
Esse tipo de coisa era comum na época. Em 1934 o Palestra Itália escondeu seus principais jogadores (entre eles Romeu e Lara que no ano seguinte viriam para as Laranjeiras) em uma fazenda no interior de São Paulo para que a CBD, em processo de montagem da Seleção para a Copa do Mundo daquele ano, não pudesse assediá-los. Em meio a esse caos, não por acaso, em 1934 o Brasil teve sua pior participação em copas.
A última e mais pesada investida contra os craques tricolores aconteceu em 1937. Para o mês de julho daquele ano a Liga Carioca preparava uma grande atração: a vinda de um combinado argentino ao Rio para enfrentar seus três principais filiados. Era um evento muito aguardado pois os clubes argentinos da AFA só podiam jogar contra os clubes brasileiros da CBD. O combinado argentino que recebeu o nome de Combinado Becar-Varella seria portanto uma oportunidade única para Fluminense, Flamengo e América jogarem uma partida internacional, algo que o público aguardava ansiosamente.
CBD e AFA tentaram impedir esse empreendimento de todas as formas. O consulado brasileiro em Buenos Aires chegou a negar-se a dar os vistos aos jogadores argentinos, situação que atrasou o embarque da delegação portenha e só foi revertida por ordem direta do Ministério das Relações Exteriores, após entendimentos com dirigentes da Liga Carioca. Mal sucedida em seu intuito de evitar a vinda dos argentinos, o objetivo da CBD passou a ser esvaziar os jogos que estes realizariam. A estratégia foi a de sempre: aliciar jogadores do Fluminense para levá-los para o Botafogo, seu grande aliado. Romeu, Lara e Machado foram os alvos desta vez. A desfaçatez era tanta que as propostas aos jogadores eram feitas no escritório do próprio presidente da CBD, Luiz Aranha. Lá os jogadores recebiam a oferta de luvas e um alto salário com uma única imposição: não enfrentar os argentinos.

Romeu e Lara
Machado, vendo que se tratava de uma manobra desleal com o Fluminense, abandonou as negociações, mas Romeu e Lara caíram no “canto da sereia”. Entraram em litígio com o Fluminense para obter seu passe e foram para o Botafogo. Romeu chegou a treinar no clube alvinegro mas poucos dias depois sumiu de General Severiano. Revoltados com o desaparecimento do craque alguns jogadores do Botafogo, entre eles os irmãos Aymoré e Zezé Moreira, e o ponta Álvaro, partiram para uma caçada à Romeu, protagonizando acontecimentos bizarros e até certo ponto engraçados. Procuraram o jogador em sua residência e na tinturaria da qual era sócio. Não o encontrando, ameaçaram sua esposa e fizeram vigília na porta do estabelecimento. Foi necessário que a esposa de Romeu chamasse a polícia para desbaratar a tocaia. Mas Romeu só reapareceria mesmo nas Laranjeiras, para surpresa geral. Mostrando-se arrependido, o craque acabou perdoado pelos cartolas tricolores. Amparado pelos contratos em vigor o Fluminense preparava-se para ir até o fim na luta pelos seus direitos, mas não foi necessário.
Houve também aliciamento aos jogadores argentinos quando chegaram ao Rio. O goleiro Grippa por exemplo recebeu a mesma proposta que os tricolores: um contrato vantajoso desde que não atuasse nos jogos promovidos pela Liga Carioca. Mas recusou. No fim das contas a excursão dos argentinos foi um sucesso. O Fluminense venceu o combinado por 3×0 diante de grande público no estádio das Laranjeiras. Romeu e Lara, envolvidos na confusão, não atuaram, mas Romeu acabou ficando no Fluminense. Lara deu menos sorte: foi mesmo para o Botafogo.

Fluminense 3 x 0 Combinado Becar-Varella (11/7/1937)

Antes do jogo Fluminense x Combinado, tricolores e adeptos da Liga Carioca fazem chacota com a CBD: “galinha morta”
O que aconteceu depois:
Quando tudo indicava que a cisão no futebol brasileiro seguiria acirrada por mais um longo período, veio o movimento de pacificação. É bem provável que o incidente envolvendo Romeu, Lara, Botafogo, Fluminense e CBD tenha sido a gota d’água. A verdade é que nem mesmo o Vasco apoiava mais as manobras da CBD. Com novo presidente, Pedro Novaes, e novas idéias, o clube de São Januário buscava outros rumos. E partiu exatamente do Vasco e do América, este na figura de seu presidente Pedro Magalhães Corrêa, a iniciativa da paz. O movimento de pacificação se alastrou de forma impressionante. De todos os lados, de todos os clubes, da imprensa e de desportistas em geral, o apoio foi quase instantâneo. Havia um verdadeiro clamor pelo fim da cisão.
Quando Fluminense e Flamengo entraram em campo para se enfrentar pelo Torneio Aberto da Liga Carioca no dia 27 de julho de 1937, apenas 16 dias após o Fluminense vencer os argentinos, a paz já estava selada. O jogo acabou se tornando um evento festivo, uma simbólica despedida da Liga Carioca, uma vez que o Torneio Aberto sequer seria concluído. Foi uma festa de congraçamento de todas as torcidas, que lotaram o estádio das Laranjeiras para celebrar a pacificação. Com grande atuação o Fluminense venceu por 4×1. Dois dias depois, a 29 de julho, era fundada em solenidade realizada na Associação dos Empregados do Comércio, na Av. Rio Branco, a Liga de Football do Rio de Janeiro, nova entidade responsável pelo futebol carioca unificado. E no dia 31, Vasco e América se enfrentavam naquele que seria o primeiro jogo da nova Liga, sendo eternizado como o Clássico da Paz.
Após o perdão, Romeu, que já havia conquistado pelo Fluminense o Torneio Aberto da Liga Carioca em 1935 e o Campeonato Carioca em 1936, ganhou os cariocas de 37, 38, 40 e 41, o Torneio Municipal de 1938 e o Campeonato Extra de 1941. Em 1942, após longo impasse na renovação de seu contrato, acertou seu retorno ao Palestra Itália.
Zezé Moreira, o justiceiro caçador de craques desaparecidos, anos mais tarde virou treinador. Dirigiu o Fluminense em três oportunidades conquistando os campeonatos cariocas de 1951 e 1959, a Copa Rio (Mundial) de 1952 e o Torneio Rio-São Paulo de 1960. Como treinador do Fluminense chegou à Seleção Brasileira e à Copa do Mundo de 1954. É até hoje o técnico com maior número de jogos no comando do Tricolor: 474.
Ninguém é perfeito. Nem os ídolos.